30 outubro 2009

Verso a verso, tirado do disco, para perceber bem todas as palavras

Menina
Em teu peito sinto o Tejo
E vontades marinheiras de aproar

Menina
Em teus lábios sinto fontes
De água doce que corre sem parar

Menina
Em teus olhos vejo espelhos
Em teus cabelos nuvens de encantar

E em teu corpo inteiro sinto o feno
Rijo e tenro que nem sei explicar

Se houver alguém que não goste
Não gaste, deixe ficar

Que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina para sobrar

Aprendi nos esteiros com Soeiros
E aprendi na fanga com Redol

Tenho no rio grande o mundo inteiro
E sinto o mundo inteiro no teu colo

Aprendi a amar a madrugada
Que desponta em mim quando sorris

És um rio cheio cheio de água lavada
E dás rumo à fragata que escolhi

Se houver alguém que não goste
Não gaste, deixe ficar

Que eu só por mim quero-te tanto
Que não vai haver menina para sobrar

Pedro Barroso, "Menina dos Olhos de Água"

24 outubro 2009

É Natal

É Natal. Umas luzes toscas envoltas em papel celofane colorido na estação do metro provam-no. Chegou mais tarde, este ano, porque só agora começou a ser Outono. Mas chegou bem a tempo de pesar de novo, como mil pedras ancestrais, sobre os ombros dele. Natal não é quando um homem quiser. Natal é quando as crianças nos obrigam a pensar na hipótese de querer algo que já se não quer fazer. Natal é quando o cheiro do fumo das lareiras reconforta e a azáfama entretém. Natal é, também, quando os nossos mortos nos visitam com maior frequência. Natal é quando se chora com maior facilidade, a olhar o fogo, lembrando o que já ficou "debaixo das cinzas", como ela escreveu ainda nem há 12 horas. Ela escreve tão bem...

Natal foi quando ele entrou no carro e foi atrás do fumo, do cheiro, da azáfama e da criança quando ali já não era o lugar dele. Atrás do carro e daquela estrada terá deixado, a apagar-se de repente, quase se fundindo, uma luz que nunca saberá até que ponto poderia um dia alumiá-lo.

Natal tinha sido também, antes, quando a mãe já não conseguia passar dez minutos sentada à mesa e o bacalhau dela estava lá, no prato, para lembrar outros Natais, quem sabe se numa tentativa de que levasse na grande viagem a imagem do que foram sempre os Natais dela. Nesse Natal ele tinha ido – não varia – atrás da criança, do cheiro do fumo, da azáfama, do vinho. E por isso a mãe não o levou no quadro do Natal, nessa viagem que não tardaria a começar. Porque já não podia sentar-se à mesa e comer o bacalhau. Porque já não conseguia falar e não queria começar outro ano. Não começou.

A mãe visita-o todos os Natais. E noutros dias também, muitos. Se calhar – porque Natal não é quando um homem quiser mas um homem pode querer, um dia, dizer-lhe não — se calhar, pensa ele, desta vez tem de avisar a mãe para aparecer noutra lareira. Também terá cheiro a fumo e chamas vivas. Terá frio e vinho. Mas não terá azáfama, é quase certo. E pode não ter criança. E se não tiver criança não tem sonhos. E os sonhos, pensa ele, às vezes podem muito bem ficar sossegadinhos nas suas caixas fechadas que ninguém dará pela falta deles. Pelo menos neste Natal.